Marcelo Nova é um cara polêmico. Não tem rabo preso com ninguém, fala o que pensa, sem papas na língua, sem se importar muito com as opiniões alheias. Dono de um humor ácido e inteligente, uma pessoa com conteúdo, acima de tudo - coisa rara no nosso rock and roll de hoje em dia.
Entrevista
MARCELO NOVA
Ricardo Cachorrão
Colaboração e fotos: Eli K. Hayasaka
Outras fotos: Divulgação
Vamos lá, Marcelo, me fala uma coisa: Camisa de Vênus – vocês voltaram, recentemente fizeram um show bem comentado no Via Funchal, estava cheio, bem legal...
Marcelo - (interrompendo) O fato de estar cheio não significa que o show estava legal... Isso é um equívoco, nos tempos contemporâneos, as pessoas acham que porque a casa está cheia o show é legal. Às vezes a casa está vazia e o show é sensacional e às vezes a casa está cheia e o show é uma bosta, cara! Essa idéia quantitativa é um equívoco enorme! Enorme! Então vamos todos assistir Ivete Sangalo no Maracanã que é o melhor show do mundo... Mas o show do Via Funchal foi um bom show, tinha um som bom.
Voltando então, o Camisa pretende lançar alguma coisa nova de disco? Tem trabalho novo? Ou foi só uma volta para relembrar os velhos tempos?
Marcelo - Não... Não... Não... Não... Nós fizemos uma gravação do que seria, ou será, um DVD, no primeiro show. No primeiro show nós já fizemos o primeiro show gravando... E se essa gravação vier a sair efetivamente, se ela realmente se concretizar num DVD, aí talvez a gente pense em fazer um álbum de músicas inéditas.
O último álbum de inéditas do Camisa foi o Quem é Você?, de 1996...
Marcelo - Foi... a última coisa que está nos meus planos é passar mais um ano tocando “Beth Morreu”, “Silvia”...
Imagino... O fã adora, mas para quem está lá no palco cantando de novo aquilo...
Marcelo - Não... Veja bem... Canções, elas têm... Algumas canções parecem que têm vida própria... A cada apresentação elas ressurgem na minha mente e na minha interpretação de uma forma que me agrada, ou às vezes até que me surpreende. Outras, talvez por eu não buscar mais essa motivação, por eu não ter mais vontade de interpretá-las, elas tendem a se tornar mais... modorrentas (risos).
Seu último disco solo foi No Galope do Tempo. Tem alguma coisa nova em vista, alguma previsão de novo trabalho? Você costuma fazer uns worshops, me fale um pouco disso...
Marcelo - Sim... Eu já faço isso há muito tempo...
É um trabalho no qual você conta a história do rock...
Marcelo - Bom, eu vendo a idéia de que vou contar a história do rock and roll dos anos 50, 60, 70, 80, bla, bla, bla... até os dias de hoje, e, quando chego lá, fico falando da minha vida, e é só isso! É basicamente isso! É como Timothy Leary fez em 92 quando eu fui assisti-lo aqui no Maksoud, e que ele falou que ia desvendar os sete canais, e ia mostrar como desbloquear os sete canais da neura, astrofísica e aí encheu de psicólogos e psiquiatras, querendo saber como era o segredo para se destravar o consciente e o inconsciente... e ele chegou e ficou lá falando de LSD e John Lennon e foi uma delícia (risos). E 90% das pessoas foram embora revoltadas querendo o dinheiro de volta no Procon! E ele ficou lá contando histórias, o que é a melhor coisa. As pessoas vão em busca do segredo do universo, e o melhor de tudo são as histórias... Então é isso, eu fico contando histórias.
Mas é a melhor coisa...
Marcelo - Mas eu digo que não! Eu digo que aquilo tem um cunho espetacular, um cunho transcendental, se você assistir aquilo você jamais será a mesma pessoa! Entende? Como disse P.T. Barnum, cara! P.T. Barnum foi o criador do circo itinerante...
P.T. Barnum não foi o cara que disse que nasce um trouxa a cada minuto?
Marcelo - Exatamente! Ele juntou a mulher barbada, o cachorro de duas cabeças, o menino de rabo, e botava nos trenzinhos e ia pelas cidadezinhas do interior e juntava multidões e multidões e multidões para assistir aquilo! Quando ele chegou em Nova York, isso em mil oitocentos e vinte e pouco, um repórter perguntou pra ele: “Mas vem cá, Mr. Barnum, como é que o senhor conseguiu ficar tão rico em tão pouco tempo?”, e a resposta dele literal, foi essa: “Meu filho, é que nasce um otário por minuto!” Como isso foi em mil oitocentos e vinte e tanto, e nós estamos já, né... Agora nasce um otário por segundo!
O marketing está aí para provar isso…
Marcelo - (enfático) O marketing é uma idéia imbecil, concebida por um idiota para atingir os otários, é isso que é o marketing, é só isso! É só isso! Se alguém que realmente tem um pouco de discernimento sobre o que interessa, sobre o que ele gostaria e sobre o que ele não gostaria, vai se interessar por marketing? Marketing é coisa de idiota pra imbecil! Ou para quem ainda não viveu o suficiente, né? Os meninos se entusiasmam com a propaganda do Nike e acham que vão jogar basquete igual a Michael Jordan! Para os meninos funciona. Mas Ricardo, voltando à sua pergunta, que a gente saiu dela...
Sim, No Galope do Tempo e trabalho solo, projetos...
Marcelo - Eu estou com um álbum bem adiantado já, de inéditas, na verdade eu sempre componho mais do que tenho capacidade de colocar num álbum, depois eu fico me torturando com quais músicas eu incluo e quais não incluo, fora metade que jogo fora porque acho que não ficou bom do jeito que eu gostaria, e estou tentando também viabilizar um DVD do Galope do Tempo... Então tem algumas coisas... Tem a história do DVD do Camisa, que não sei se vai adiante... Então são algumas coisas que estão ainda para acontecer daqui alguns meses.
Está tocando muito? Solo ou com o Camisa...
Marcelo - Estou, mas não, com o Camisa, não... Nós paramos depois de, sei lá, Brasília, eu acho que foi...
E era formação quase original do Camisa, só não tinha o Aldo...
Marcelo - Não... Na verdade era a formação original do Camisa, sim, que sou eu, o Gustavo, Karl e Robério, essa é a formação original... O Aldo entrou bem depois.
E agora tem o Carlini e o Dênis na bateria, e por sinal, esse menino toca muito, ele bate com vontade...
Marcelo - É, ele é um grande moleque... E ele não só bate, ele tem noção de onde bater, que é mais importante do que sair batendo por aí...
Marcelo, vamos falar do seu novo projeto, que é o site Bota Pra F... (www.botapraf.com.br), que é uma rádio e TV on line, como é que está isso?
Marcelo - Rapaz... É curioso... Porque você tem um site com seis mil acessos em três semanas, no boca-a-boca, sem nenhum trabalho de divulgação, sem nada, nada, nada, nada... Então talvez isso seja sintomático de que tem algumas pessoas que não se interessam só pelas programações que estão aí nas TVs, digamos, convencionais. Porque basicamente o que você encontra lá é o que não tem nas TVs, nestes canais de música, de clipe, MTV, Multishow. Nós temos noção de nosso tamanho, e, no entanto, e talvez até por isso, por ter noção do tamanho, isso nos dá chance de fazer algo que é muito, muito, muito, muito diferenciado, não me cabe dizer se é bom ou se é ruim, mas é muito diferenciado do mainstream, é diferente.
Tem algumas coisas que você já deve estar com o saco cheio de responder, mas são coisas que o povo quer saber (risos)...
Marcelo - Porra, bicho, então nem pergunta! (risos)
Jogo rápido, meu velho, me conta como é para o fã Marcelo Nova, um cara que sempre gostou do trabalho, de repente ser parceiro e ter músicas suas gravadas pelo Eric Burdon, do Animals, no álbum dele?
Marcelo - É surpreendente... Foi surpreendente, porque é o tipo da coisa que você não se propõe a... Eu era um menino, tinha 16 anos, 15 anos, 14, ele morava em outro continente, e eu morava em Salvador, na Bahia, ele morava na Inglaterra... Você nunca imagina que um tipo de coisa dessa um dia vai acontecer! É que... Eu tinha um triunvirato de rock inglês, eu e a maioria de quem gostava, né, que eram Beatles, Stones e Animals, que eram assim, as três grandes bandas do início dos anos 60, vamos dizer assim, antes de heavy metal, antes de Led Zeppelin, antes Black Sabbath, era 64, 63, 65... Eram Beatles, Stones e Animals. Os Beatles tinham uma vocalização que era muito, assim, eficiente, porque era muito coordenada, eles tinham o George Martin para conduzir aquela coisa de John e Paul fazerem aqueles vocais dobrados e tal, funcionava tudo direitinho, mas era pilotado... Mick Jagger sempre foi muito afetado pro meu gosto pessoal. E eu gostava era de Eric Burdon, eu achava que era o cara que chegava e pra ele não tinha tempo ruim, ele fazia a coisa do jeito dele, e fazia de uma forma muito intensa, eu sempre gostei dos performers, do intenso, sempre gostei, da passionalidade, da entrega.
E... bom, o tempo passa, né... Eu coleciono discos há muito tempo e os dele não foram exceção. Em 95... 94, eu acho, ele veio tocar aqui no Nescafé & Blues, e eu fazia um programa na rádio Transamérica, chamado Let’s Rock, eu fui entrevistá-lo, a entrevista era para levar quarenta minutos e levou duas horas, e nós ainda fomos almoçar. Ele voltou dois anos depois, e o cara que trouxe ele pra cá, ou melhor, desculpa, a pessoa que foi buscá-lo no aeroporto, me convidou para ir ao aeroporto encontrar ele. Ele foi tocar no Palace, que se chamava Palace na época. Eu estava gravando o Quem é Você?, e aí disse pra ele “Eric, eu estou gravando um disco com a minha banda, você quer ir até o estúdio?”, ele disse “Claro”, e eu achei que ele estava sendo um bom inglês, educado, e aí quando acabou o show dele no Palace, nós ficamos conversando no camarim com ele e eu disse “Olha, eu tenho que voltar pro estúdio,que nós estamos gravando, você quer ir?”, ele disse, “Quero”.
Aí nós gravamos “Don’t Let Me Be Misunderstood”, e uns três meses depois, ou quatro meses depois, fui para Los Angeles pra mixar o disco, e ele viajou, ele mora a três horas de Los Angeles, num rancho, e ele saiu do rancho para me encontrar em Los Angeles, e nós enchemos a cara, e ele falou “traduz as suas letras pra mim”.
Aí eu voltei pro Brasil. Escolhi três canções a esmo, as que se adaptavam melhor a uma tradução... (estalando os dedos)... instantânea, assim, e mandei pra ele. Isso foi por volta de outubro de 96, e aí não tive mais resposta dele, nem nada. No dia primeiro de janeiro, e eu não esqueço justamente por ser primeiro dia do ano, ele me ligou e disse uma coisa interessante: “Quanto mais eu ouço suas letras, mais eu noto uma peculiaridade que você tem, de que os objetos que você inclui nas letras de suas canções nunca são objetos, eles são mais que objetos”, daí ele ficou falando da letra de “Eu Vi o Futuro”. Ele dizia “me mostre o que você tem de bom, a sua alma, o seu batom, você quer dizer que o batom é o que é breve e a alma é pra sempre”, e ele começou a destrinchar coisas que, na verdade nem eu tinha pensado, ele releu minha canção de uma forma muito pessoal, e eu deixei ele viajar na história. E ele falou assim: “Eu não quis pedir pro meu empresário te ligar, eu mesmo quis ligar e queria saber se você tem interesse em trabalhar comigo, estou querendo gravar um álbum e gostaria que você fizesse algumas canções comigo para fazer parte do álbum. OK?”
E nós acabamos indo até Nova York gravar uma demo, e esta história está bem contada, melhor contada, por ele em meu site, ele escreveu...
Então, esse é o tipo de situação que você não planeja, você não se esforça pra conseguir, você não batalha, simplesmente acontece, não está escondida atrás de um disco de ouro ou uma estatueta de prêmio de melhor isso, ou melhor aquilo.
Eu tive... Com o Raul foi a mesma coisa, de uma forma diferente, mas mais foi basicamente a mesma coisa.
Chuck Berry veio pro Brasil e foi tocar com minha guitarra, numa cidade como São Paulo, onde existem cinco mil guitarristas e ele vai tocar com minha guitarra, e eu nem sou guitarrista, quer dizer, as coisas comigo acontecem assim, meio sem... sem marketing (risos), sem planejamento, sem gravadora, sem ninguém por trás pra decidir as coisas. Na verdade a indústria é a última a saber o que vai acontecer. Como no caso de Eric Burdon, por exemplo!
Como no caso do Camisa de Vênus, são coisas que acontecem, mesmo tendo tudo contra. O Camisa de Vênus não era pra dar certo, começando pelo nome...
Marcelo - Isso... Isso... Tinha tudo pra dar errado... Não era pra dar certo mesmo...
Graças a Deus deu certo!
Marcelo - Mais graças ao diabo do que a Deus... Deus é um velho peidão, com aquela obra horrível que ele deixou... Foi mais o diabo! Foi mais o diabo... Foi aquele mau cheiro do diabo, aquele fedor que provocou aquilo, porque nós dormíamos oito caras num apartamento de quarto e sala, então era um cheiro de chulé que só o diabo tinha um cheiro daquele, era um chulé do cão, velho! (risos)
Você mesmo falou no rádio que Bob Dylan é um artista... Ele se dá ao luxo de fazer o que quer, porque é um artista, está lá pra se expressar, não está lá pra vender música simplesmente. Quando você falou isso agora, parei pra pensar... É a alma do artista... Quando o cara é um artista, ele chega direto no outro artista e fala direto... Ele não precisa ligar pro seu empresário para tocar com você... E o Eric Burdon sempre foi um artista seminal, canta com a alma, como os bluesmen de Nova Orleans.
Marcelo - O mais interessante, digno de nota, é que aqui no Brasil os artistas são mais cheios de pompa, e muito mais cheios de si, do que um cara como Eric Burdon, que passa a mão no telefone e liga... aqui tem o empresário, o produtor, o assessor, é muito engraçado. É muito engraçado! É muito engraçado, cara!!
Engraçado, mas de certa maneira, é uma proteção, o cara canta com playback, de repente se um cara como Eric Burdon resolve ligar e convidar para tocar, como ele vai fazer? Ele faz playback!
Marcelo - O que torna tudo mais engraçado ainda (risos)... E aí ele gravou as três músicas, na verdade fizemos cinco e ele gravou três, e está no álbum chamado My Secret Life, que não saiu no Brasil, mas pode ser encontrado através das importadoras.
Você falou do Led Zeppelin, o que você acha dessa volta deles? Foram 25 milhões de pessoas cadastradas para comprar 20 mil ingressos...
Marcelo - Veja bem, a situação deles é uma situação muito diferente da nossa, brasileira! Eles são... Em primeiro, eles são multimilionários... Multimilionários... Eles não precisam ficar fazendo vaquinha, pra arrecadar grana, pra matar um troco, pra comprar um carro, isso é muito distante da realidade deles... Jimmy e Bob sempre foram muito próximos de Ahmet Ertgun, o criador do selo Atlantic, e que sempre os incentivou, assim como sempre incentivou muito o Eric Clapton, que é outro que era muito amigo dele. E com o falecimento de Ertgun, eles resolveram fazer esse show... Acredito que seja absolutamente verdadeira a intenção de homenageá-lo... E por outro lado também... Brigaram muito... Quando fizeram o Unledded, o que eles bateram em John Paul Jones, mas o que eles bateram, cara (muitos risos)... Enfim... E o menino toca igual o pai, né, o menino Bonham lá, ele toca igual o pai, é da mesma escola do pai... Toca igualzinho, a mesma pegada... É capaz de funcionar! Agora o que vai gerar isso de demanda depois, aí, se vão resistir ou não à tentação, só eles podem responder. Mas é uma banda do maior respeito! Daí aqui no Brasil os caras têm essa idéia (irônico) “Ah, eles estão voltando pra arrumar um troco”.
Já me disseram isso, e respondi que esses aí não precisam de um troco...
Marcelo - Não faz sentido... Quer dizer, e mesmo que fosse... E mesmo que fosse! Qual o problema de se fazer um troco? Qual seria o problema se você está fazendo seu trabalho? É o trabalho do cara e qualquer pessoa é remunerada pelo seu trabalho... Não vejo nenhuma exceção, então, por que bandas ou artistas não podem se reunir pra tocar? Aqui tem essa coisa de...
...de que é legal ver o famoso fudido...
Marcelo - É... (enfático) E quanto mais o cara está fudido é melhor... E se o cara começa ganhar uma grana, está vendido! Quando está bem, se vendeu ao sistema... Que é uma frase extraordinária... Se vendeu pro sistema... É uma frase interessante! O que isso significa? E o que é o sistema? Quem é o sistema? Qual o número da conta do sistema, pra ele transferir dinheiro da conta dele pra sua? Eu queria saber essas coisas...
Como o caso do Lobão, que sempre criticou as gravadoras, assinou contrato com a Sony e lançou um Acústico MTV. Todo mundo bateu nele, chamou de vendido...
Marcelo - É, cara, mas vem cá... Ele não bateu pra caramba nas gravadoras??? Bateu pra caramba, não enfrentou os caras? Brigou, brigou... E, qual o problema dele ter feito um acordo depois? Mas isso está dentro daquilo que a gente estava falando... De uma mentalidade provinciana pra caramba...
A diferença, falando de samba, uma cantora de blues lá fora, até hoje canta e ganha dinheiro, aqui, passou de uma certa idade, uma cantora de samba brasileira aparece de vez em quando num programa de TV... e vai ganhar?
Marcelo - É, tem essa idéia... Mas tudo aqui é muito diferenciado... Estávamos falando de Ahmet Ertgun... Eu tenho 27 anos de carreira e 17 álbuns gravados... Eu conheci dois diretores de gravadora... Que um conhecia música, muito bem, um homem inteligente, culto, chamado André Midani, e estou muito a vontade pra falar, porque tive duas discussões muito ríspidas com ele, então, não é meu amiguinho. Esse era um cara que... aliás, conheci Ertgun também, era um cara que gostava de música, sabia quem era o baixista de Aretha Franklin em 65, quem gravou com Wilson Picket, como era o nome do guitarrista do Quicksilver Messenger, sabe, essas coisas? Então... Era um homem da indústria que pensava e agia, evidentemente sem se descuidar do lado comercial da coisa, porque ele geria uma empresa, mas, evidentemente, a prioridade era a música, e a partir da música se fazia negócios, e hoje se inverteu isso. Esse bando de verdureiros que estão aí, com todo o respeito a quem vende verdura na feira, mas esse bando de verdureiros que está aí, quer vender tudo, quer vender, vender, vender, vender... Vender o que? Eles não têm conteúdo para vender nada, eles partem do princípio que querem vender qualquer coisa! Querem vender qualquer coisa, e qualquer coisa é NADA! Qualquer coisa é sinônimo de nada... E é por isso que esses caras enfiaram a indústria na merda em que ela está! E culpam a pirataria, culpam isso, culpam aquilo... Foram eles que colocaram a indústria na merda! Esses caras que vendem um CD a R$ 45,00... E depois põem a culpa na pirataria! Eu comprei o DVD do Cream, aquele no Royal Albert Hall, importado, por R$ 80,00, e o nacional saiu por R$ 95,00!
Esses caras da indústria colocaram a si próprios com a calça na mão, eles colocaram a indústria com o pires e as calças na mão, você está entendendo? O cara que me vendeu tirou nota, pagou a guia de importação, não me fez favor, não me deu nada, tirou o lucro dele, porque é comerciante e tem que ganhar o dele mesmo... E o nacional, é mais caro? Isso é um absurdo! Um DVD que vem de outro continente é mais barato que um nacional! Você está louco? Esses caras são os principais responsáveis pela indústria estar na situação em que se encontra! A pirataria é outra coisa, foi coisa de mudança de sistema, de analógico pra digital, que facilitou a reprodução. O fato é que eles perderam o controle!
Você vê um selo como a Rhino (selo californiano que só lança coisas vintage), por exemplo, americana, os caras não lançam qualquer coisa, muito pelo contrário. Uns quinze dias atrás comprei isso aqui, a última coisa que eles lançaram (levanta e pega um box na discoteca), se chama Love With the Songs We Sing, são quatro CDs com um livro fantástico de fotografias, falando sobre a cena de São Francisco dos anos 60, capa dura, edição de luxo, eles fazem isso... E pergunta se eles estão felizes? Agora me pergunta se o selo está mal das pernas? Não está! Porque eles fazem a coisa bem feita! Não é pra todo mundo! Eles não querem conquistar o mundo. Eles lançam produtos de qualidade para um público específico. Os caras aqui pensam diferente, eles querem aqueles pagodeiros que vendem dois milhões de cópias! E quem vendia 200 mil era um babaca! Caíram do cavalo, nunca tiveram nenhuma paixão pela música, nunca tiveram nenhum interesse que não fosse o mais mercantilista possível, e eles falam do que já estão fartos de falar, depois vão pra churrascaria, se entopem de picanha e depois aliviam os gases junto com seus pensamentos!
A Rhino lançou aquele Box do The Doors fantástico que tem a porta e você olha pelo olho mágico e vê a banda dentro, com uma qualidade incrível, e aquele Bruce, que gravou a banda, remasterizou tudo... Eu tenho o primeiro CD do The Doors ou o L.A. Woman, por exemplo, e quando ouço o original e depois a edição desse box, é inacreditável aquilo! Eles sabem trabalhar! A impressão é que gravaram de novo, eles se preocupam com a qualidade da coisa. O dinheiro é necessário, mas parte da música pra chegar no dinheiro! A abordagem é diferente!
Uma coisa de que o público costuma reclamar muito é que a qualidade musical está caindo, que as músicas de hoje não tem qualidade... O que é qualidade? Qual é a qualidade que você está buscando? Neste rock novo, tem algo que te agrada?
Marcelo - O problema... Imagino a dificuldade da molecada que está começando, é que queiram eles, ou não queiram eles, o catálogo de riffs, é o mesmo! É o mesmo! Você tinha nos anos 50 uma coisa ingênua, mas ao mesmo tempo era uma fagulha que estava surgindo ali, era uma febre, era uma descoberta, Little Richard, Jerry Lee, Elvis, Eddie Cochran, Gene Vincent, era uma... literalmente, uma revolução musical, do ponto de vista, inclusive estético, pela primeira vez havia uma diferença entre a música que você ouvia e a música que seu pai ouvia! Pela primeira vez, porque até os anos 50, o filho ouvia a música que o pai ouvia, que ouvia a música que o avô ouvia, que o bisavô... Era a mesma coisa, a mesma coisa... Basicamente, aí nós falamos de séculos atrás, que era música clássica.
Blues e R&B eram relegados a uma classe negra de condição econômica miserável e a classe branca ouvia country songs, as mais clean possíveis, celebrando a família, partindo do gospel pra criar canções religiosas, e isso se passava de geração pra geração, quando surgiram os meninos do rock and roll lá nos anos 50, mudou tudo, por que o que eles fizeram? Eles incorporavam a música dos negros, que vinha sendo marginalizada, muito antes de Robert Johnson, muito antes... E aquilo virou uma mania, a indústria rapidamente descobriu que, pela primeira vez, adolescente tinha poder de voto e de decisão, “olha, os caras compram single, vamos fazer single, vamos fazer rock and roll virar”.
E aí veio a contrapartida da história, aquela história toda... a sujeira, né... Jerry Lee casa com a prima, Chuck Berry se envolveu com a loira lá e foi pra cadeia, mas o fato é que é essa diversificação e esse surgimento em série de um artista atrás do outro, desembocou lá nos anos 60, quando você tinha uma sonoridade individual pra cada um, que foi aquilo dos anos 50 elevados à enésima potência, na verdade se você pegar Hendrix, com toda genialidade que ele tinha, um menino, que morreu com 27 anos, e fez mais que muita gente de 80 fez a vida inteira, mas um menino, e onde estava calcada a música dele? A música era blues, o que ele fazia era blues... Agora ele levou aquilo pra uma dimensão tão além de seus contemporâneos, que se tornou provavelmente o maior guitarrista de todos os tempos, porque ele já virou clássico e depois que vira clássico não dá mais, daqui a duzentos anos os caras vão dizer... É como Beethoven na música clássica, é como Shakespeare na literatura. Quando é que vai aparecer um escritor que tenha a capacidade de narrar a dimensão humana, o ódio, a paixão, a inveja, o ciúme, a cobiça, o desejo, com a pluralidade e a complexidade de Shakespeare... Né?
Você tinha Bob Dylan que, aliás, se tivéssemos um Shakespeare no rock and roll, seria ele (risos), se no rock and roll coubesse um Shakespeare, seria ele, e não digo isso gratuitamente não, porra! Se você pega uma canção, por exemplo, como... “Simple Twist of Fate”, cujo verso final diz (declamando): “People tell me it’s a sin / To know and feel too much whitin. / I still believe she was my twin, but I lost the ring. / She was born in spring, but I was born too late. / Blame it on a simple twist of fate.” Isso poderia ter saído de Hamlet, por exemplo, tranqüilamente, sem nada a dever, nada.
Então você tinha esses fenômenos, onde cada banda e cada artista tinham um som, Hendrix era diferente de Bob Dylan, que era diferente do Steppenwolf, que era diferente do Led Zeppelin, que era diferente do Black Sabbath, isso independente de ser americano ou inglês. Havia uma busca pela sua própria identidade, você não queria ser mais um, você queria ser UM, então as coisas foram se sucedendo, veio o punk, veio isso, veio aquilo...
E com o advento do grunge, aí você tem o gênio ao contrário, você tem o Kurt Cobain, que era apenas um menino, confuso, coitado, com uma infância trágica, um menino atrapalhado, que virou mártir muito cedo... E que é como aquele menino que era um coitado, o Syd Vicious. Um coitado, virou um hero na mente de um monte de adolescentes, um menino drogado, confuso, perdido, sem noção, sem valores, sem nada, virou um hero desse mundo tentador do rock and roll, né... Tentador e perigoso... Quando você mergulha e vai fundo nele e você descobre que... Bandas de rock tinham que acabar depois dos 30 anos, né, cara? Banda de rock é coisa de menino, menino é que pensa em grupo...
O que me fez sair do Camisa de Vênus foi exatamente a constatação de que o meu desejo era totalmente diferente dos demais integrantes da banda, coisa que era surpreendente, porque seis anos antes não era, pensávamos todos de uma forma igualitária, tínhamos todos os mesmos objetivos... A idéia de que você se torna um indivíduo... Porque, o que é um grupo de rock? É um coletivo, e o que é um coletivo? É andar de jeans, usar as mesmas grifes, todo mundo de tênis igual, todo mundo se possível com corte de cabelo parecido, pra que? Porque é um por todos e todos por um! A juventude, a molecada... Ser jovem pressupõe isso... Você está des-co-brin-do o universo, você está descobrindo a própria existência. Você precisa de signos com os quais você se identifique. É naturalíssimo.
Meu filho está com 15 anos, e está montando a bandinha de rock dele com os amigos. Todos gostam das mesmas coisas, todos gostam de heavy metal, todos gostam das mesmas coisas! Eu olho aquilo e digo, “Ah que bom! Que bom que as coisas estão indo ao seu caminho!”.
E o novo disco solo, só falando de mulheres, que deve sair em 2008?
Marcelo - Ser aquele cara que compunha hits, um atrás do outro... “Beth Morreu”, “Hoje”, “Silvia”, “Eu Não Matei Joana D’Arc”, “Deus Me Dê Grana”, “Simca Chambord”, “Só o Fim”... não me interessa mais! Eu escrevi uma canção chamada “A Ferro e Fogo”... E naquela época me chamavam de punk baiano, eu disse, então vou mostrar o quão punk vou ser, vou gravar isso com orquestra sinfônica! Falei com meu amigo Pena Schmidt, que era produtor, e disse “Pena, me arrume uma orquestra sinfônica”. Trinta e cinco músicos, tocando uma canção minha e eu a interpretando sem guitarras, sem bateria...
E ali eu percebi que... talvez eu tivesse um certo talento para escrever, fora das amarras e das expectativas, porque as expectativas eram: Marcelo escreve muito bem sobre situações que envolvem o sexo oposto, tinha sempre “Lena”, tinha sempre “Silvia”, tinha sempre “Beth Morreu”... E malícia e palavrão, então os caras já vinham pra mim querendo saber qual era a próxima mulher que eu estava comendo e se eu ia narrar isso de uma forma bacana, que todo mundo pudesse compartilhar. Fui me afastando disso...
Fui me afastando disso por desinteresse, não é que eu não precisasse! Não! Eu vivo disso, isso é meu trabalho, mas eu tinha que fazer como Frank Sinatra fez, tinha que fazer “My Way”... Entendeu? Eu tinha que fazer do meu jeito, e do meu jeito foi sair dessa roda viva, sair desse bochicho, de ficar disputando espaço na mídia, de ter que fazer música pra tocar no rádio, de ter que ficar dando amém e fazendo salamaleque pra todo mundo que possa me oferecer uma possibilidade de destaque.
Eu não sou ingênuo, portanto eu sabia que ia ter um preço a pagar, você não toma uma atitude dessa impunemente... Você paga o preço, e as pessoas dizem... (cochichando) “Marcelo... Marcelão... Marcelo é muito doido, irmão”.
Mas ninguém sabe o sangue que custa você ser muito doido (batendo no braço). Esse é o ponto! Mas ninguém tem noção o quanto de sangue você tem que derramar pra adquirir o direito de ser muito doido. Porque de porra louca o mundo está cheio, agora pra você ser muito doido ou muito louco e você conduzir a sua vida, manter a sua família, traçar uma perspectiva, seguir em frente, dar a cara pra bater, subir no ringue, bater, apanhar, cair, levantar, isso não é pra todo mundo, não... Não é pra todo mundo, não! Neguinho treme, velho, nas bases... Neguinho treme... treme... Essa é a real. Na hora de encarar o bicho, neguinho amarela.
O universo do rock and roll, bicho, é um universo criado com símbolos adolescentes, e é uma contradição, porque o rock and roll está velho, o rock and roll está com quase 60 anos de idade, do momento em que Alan Freed disse que era rock and roll e batizou, claro que é mais velho que isso... Mas a partir do batismo... Então você começa perceber que tem várias etapas cronológicas de você se situar dentro do rock and roll!
Eu acabei de falar de meu filho, o Drake, meu filho tem 15 anos e adora heavy metal, eu tenho 56 e já adorei heavy metal... Mas hoje não cabe mais dentro da minha perspectiva ficar ouvindo banda que tem monstrinho na capa e letra que fala de Loch Ness que vai sair de dentro do fundo do mar, você entende? Isso é pra ele que tem 15 anos, se eu, aos 56, ficar vibrando com isso, eu sou débil metal! Eu sou débil mental se ficar vibrando com a história de (cantando) Loch Ness saindo de dentro do lago! Confesseeee... confesseeee... Loch Nessss!
A pantomima do rock and roll... você vê essas bandas, eu citei, por exemplo, Judas Priest, dessa música “Loch Ness”, que o Drake adora, daí fico pensando como que um cara de 60 anos deve se sentir se ele não criar um personagem pra si próprio, se ele não se transformasse num ator, como Alice Cooper, por exemplo, como ele vai se sentir subindo no palco pra fazer o trabalho dele cantando uma ode ao monstro que está na lagoa...
Então, eu decidi me poupar disso... Eu não ia me dar bem com esse tipo de situação. Eu sou um ator muito canastrão, eu jamais seria tão bom quanto ele... Eu sou como Tarcísio Meira, quando estou preocupado, franzo a testa, quando estou alegre, dou um sorriso, entendeu? Eu não ia ter capacidade pra encarar um negócio desse jamais... Jamais... Jamais!
Não consegui criar uma persona, preferi me ater ao que eu sou, do meu jeito, da minha forma... Sem querer conquistar o mundo! Sem Pink e Cérebro a cada dia querendo conquistar o mundo de uma forma mirabolante, onde você possa evidenciar todo seu talento. Onde você possa evidenciar todo seu conhecimento...
Então... É muita escrita, bicho, é só o que eu tenho feito... É escrever!
O Galope do Tempo foi um disco que me custou treze anos! Se eu tivesse vinte e poucos anos eu jamais teria paciência pra esperar treze anos! E compondo canções durante treze anos... Jamais! Você não tem paciência pra isso.
E esse é um dos grandes paradoxos da existência! Quando você tem muito tempo, você não tem nenhuma paciência, você quer tudo e quer AGORA! E quando você chega no ponto em que sua vida já está se escoando, estranhamente você perde a ansiedade, você perde o desejo de que tem que ser agora... Não! Pode ser agora, mas se não for agora, pode ser no próximo ano, e se não for NUNCA, paciência! A vida é a arte de lidar com as perdas, envelhecer é a arte de lidar com as perdas! É isso, é basicamente isso!
E o rock and roll não te permite isso, e estou cada vez mais afastado do rock and roll! Cada vez mais distante do lifestyle, do estilo de vida do rocker, de casaco de couro, chegar e derrubar mesa de bar, mandar o garçom tomar no cu, ficar às seis horas da manhã e pedindo pro avião trazer três graminhas... Entendeu? Esse lifestyle do rock and roll é algo que eu vivi, não passei por ele de orelhada, ninguém veio me contar o segredo do rock, eu fiz!
Agora, eu não posso ser ingênuo de achar que isso é o sentido da vida. Não, não, não, não... Minha vida hoje é muito mais multifacetada no ponto de vista de meu intelecto, e da minha percepção, do que essa coisa delineada por uma tendência, e o que me interessa de saber de porra de tendência mais nessa altura do campeonato, rapaz? Qual a nova tendência? Foda-se! Se for bom, vai perdurar, se não for, vai desaparecer... Lembra quando um tempo atrás disseram que a melhor banda era o Stone Roses? Todo mundo falava, Melody Maker, Mojo, Uncut, todas as revistas dos anos 90 diziam que a grande banda da década era uma banda chamada Stone Roses... Acabou, sumiu, não tem relevância, não tem importância, não tem significado! É assim que é, no calor da batalha, você tende a hipervalorizar seus feitos!
O primeiro disco do Camisa - as pessoas, os fãs adoram o disco! Eu entendo o motivo, pelo momento histórico em que ele aconteceu, dentro da situação como aconteceu... Mas o disco é muito ruim! É muito ruim! Agora, por outro lado, era o melhor que podíamos fazer naquele momento - o que não o torna um bom disco! Porque de intenção boa o inferno está cheio, meninos! (risos)
Pois é isso, meninos, deu pro gasto? Deu pra se divertir com o ataque ao rock and roll? (risos)
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Blog Marcelo Nova